O Bisturi e o "Like" — A Encruzilhada Ética da Medicina na Era Digital
- RAPHAEL JORGE TANNUS

- 23 de out.
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Por Raphael Jorge Tannus

Resumo
A presente reflexão examina a crescente exposição da prática médica nas redes sociais e a tensão instaurada entre o dever ético e o impulso mercadológico do chamado “médico influencer”. Partindo da análise da Resolução CFM nº 2.336/2023 e de julgados dos tribunais superiores e regionais, o texto sustenta que, embora a normatização recente reconheça o ambiente digital como espaço legítimo de comunicação, o Poder Judiciário tem reafirmado a intangibilidade dos princípios hipocráticos, sobretudo a dignidade do paciente, o sigilo profissional e o decoro da função médica. Assim, conclui-se que a medicina não pode ser reduzida à estética da autopromoção nem ao espetáculo da exposição virtual, sob pena de profanação de sua essência ética.
Palavras-chave: Ética médica; Publicidade médica; Redes sociais; Responsabilidade civil; Dignidade do paciente; Sigilo profissional.
Introdução
A medicina contemporânea caminha sobre um fio tênue. De um lado, o bisturi que cura; de outro, o “like” que seduz. As plataformas digitais transformaram o médico em personagem público, criador de conteúdo, gestor de imagem e, por vezes, comerciante de si mesmo. Essa transfiguração, sedutora e perigosa, altera o eixo de gravidade da profissão: a cura, que antes se fazia em silêncio e recato, hoje disputa atenção com algoritmos e métricas de engajamento.
O fenômeno não é neutro. A medicina, historicamente erigida sobre a confiança e o segredo, vê-se agora diante de uma economia da visibilidade. A cada “story”, corre o risco de converter o sofrimento humano em espetáculo, e o ato médico — antes sagrado — em marketing. Cabe, pois, à razão jurídica e ética resgatar os limites que a própria técnica impôs à vaidade humana.
Metodologia de Análise
A análise empreendida assenta-se sobre dois pilares:
(i) Normativos: a Resolução CFM nº 2.336/2023, o Código de Ética Médica, o Código Civil (arts. 11 a 21) e o art. 5º, incisos IX e X, da Constituição Federal, que resguardam a liberdade de expressão e os direitos da personalidade.
(ii) Jurisprudenciais: decisões do Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça que delimitam a responsabilidade civil e ética de médicos em ambientes digitais, revelando como o Poder Judiciário tem operado o equilíbrio entre a liberdade de informação e o respeito ao pudor moral da profissão.
A investigação, de natureza qualitativa, busca compreender a coerência axiológica entre norma, costume e aplicação judicial — triângulo em que se reflete o ethos da medicina em tempos de espetáculo.
Análise e Discussão: Entre o Direito de Informar e o Dever de Silenciar
1. A Imagem do Paciente como Direito, e Não como Mercadoria
A exposição da imagem do paciente representa o núcleo mais delicado dessa problemática. O direito à imagem não é um adorno jurídico: é a exteriorização da própria dignidade. Quando o corpo do paciente é reduzido a instrumento publicitário, desfigura-se o sentido ético da profissão.
A Apelação Cível nº 10024131118325001 MG, Relator.: Roberto Vasconcellos, Data de Julgamento: 20/08/2020, Data de Publicação: 01/09/2020) traduz essa compreensão: o médico que utiliza, sem autorização válida e específica, fotografias de pacientes com fins de promoção pessoal incorre em violação in re ipsa, à luz da Súmula 403 do STJ. O consentimento para o tratamento não implica consentimento para a exibição. Entre tratar e exibir, há um abismo moral que o direito não pode ignorar.
2. O Controle Judicial do Poder Disciplinar
Os Conselhos de Medicina, guardiões da ética profissional, não estão imunes ao controle judicial. O TRF-4, no Agravo de Instrumento nº 5030832-73.2023.4.04.0000 (TRF-3 - AI: 50167451320214030000, Relator.: Desembargador Federal DENISE APARECIDA AVELAR, Data de Julgamento: 21/10/2021, 3ª Turma, Data de Publicação: DJEN DATA: 26/10/2021) - suspendeu a interdição imposta a um médico por publicidade considerada irregular, reconhecendo a desproporcionalidade da sanção em face da conduta. A decisão não absolve o infrator, mas revela um princípio de ponderação: a infração formal às regras de publicidade não se confunde com o dano ético-material ao paciente.
A atuação dos Conselhos deve observar o equilíbrio entre a tutela do prestígio da profissão e a liberdade comunicativa do indivíduo. O excesso sancionador, longe de fortalecer a ética, pode convertê-la em instrumento de censura.
3. O Sigilo como Juramento e como Lei
Mais do que uma cláusula ética, o sigilo é o cimento moral da medicina. O REsp 1.687.860/SP (STJ) - (STJ - REsp: 1687860 SP 2015/0310570-3, Relator.: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 07/05/2019, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/05/2019) - ao examinar caso de divulgação de informações clínicas em livro, fixou lição de alcance perene: quem se vale do conhecimento adquirido em razão da profissão para fins de autopromoção viola o pacto hipocrático e o ordenamento jurídico. O anonimato formal não elide a infração se o contexto permitir a identificação do paciente.
Nas redes sociais, essa advertência ecoa com força renovada. O relato de “casos clínicos” para fins de visibilidade — ainda que travestido de didática — constitui prática temerária. A fronteira entre a narrativa ilustrativa e o devassamento da intimidade é sutil, mas juridicamente decisiva.
Conclusão: Entre a Influência e o Ofício
A medicina pode dialogar com o mundo digital, mas jamais se submeter à sua lógica. A Resolução CFM nº 2.336/2023 reconhece a inevitabilidade da comunicação moderna; o Judiciário, entretanto, preserva o núcleo intangível do ser médico: o sigilo, o decoro e a primazia do paciente.
O médico que busca seguidores arrisca perder o que o distingue do influenciador comum — o juramento de servir à vida, e não à própria imagem. A medicina que se entrega à estética do “feed” trai a sobriedade que a dignifica. Pois não é o número de curtidas que legitima o saber, mas a confiança silenciosa de quem se deita no leito e entrega o corpo à ciência.
O bisturi cura; o “like” seduz. Entre ambos, há o abismo ético onde se decide se o médico continuará a ser médico — ou apenas mais um ator no teatro das vaidades digitais.




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