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A Dissolução de Sociedade no Ordenamento Jurídico Brasileiro


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Por Raphael Jorge Tannus


Resumo


A dissolução das sociedades empresárias representa o marco inicial do processo de encerramento da personalidade jurídica. Longe de ser um ato instantâneo, constitui um fenômeno jurídico composto por três fases: dissolução, liquidação e extinção. O presente artigo analisa as causas, os efeitos e os procedimentos da dissolução no direito brasileiro, com base no Código Civil, na Lei das Sociedades por Ações e na Lei de Falências e Recuperação de Empresas, examinando também as decisões paradigmáticas do Superior Tribunal de Justiça. Aborda-se, ainda, o tema da apuração de haveres, com detalhamento sobre o balanço de determinação, o balanço de verificação e a técnica do fluxo de caixa descontado, evidenciando o contraste entre métodos contábeis e jurídicos de avaliação patrimonial.


Palavras-chave: Dissolução; Sociedade empresária; Liquidação; Apuração de haveres; Balanço de verificação; Fluxo de caixa descontado; Direito societário.


1. Introdução


A dissolução de uma sociedade empresária é fenômeno jurídico de alta complexidade, que não se resume à cessação formal de suas atividades. Ela inaugura um processo estruturado e sequencial que envolve a liquidação e a extinção, etapas destinadas à satisfação das obrigações e à partilha do remanescente patrimonial. Essa sequência visa assegurar que o encerramento da pessoa jurídica ocorra em conformidade com a lei, preservando a segurança jurídica e a regularidade das relações econômicas.


No contexto brasileiro, a disciplina normativa da dissolução se encontra fragmentada entre o Código Civil, a Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/1976) e a Lei de Falências e Recuperação de Empresas (Lei nº 11.101/2005). Cada diploma atende a um tipo societário e a uma causa dissolutória distinta, mas todos convergem no propósito de proteger credores, sócios e o interesse público na preservação da empresa enquanto unidade produtiva.


A dissolução, portanto, não é um ato de ruptura arbitrária, mas o resultado de um evento jurídico que põe fim ao affectio societatis ou à capacidade econômica de a sociedade cumprir o seu fim. Este artigo busca compreender essa dinâmica, analisando o fundamento normativo e os entendimentos consolidados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão responsável por uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional.


2. A Dissolução no Código Civil


O Código Civil de 2002 disciplina a dissolução das sociedades contratuais, notadamente as sociedades limitadas, nos arts. 1.033 a 1.038 e 1.044 a 1.045. O artigo 1.033 elenca as hipóteses de dissolução de pleno direito, como o vencimento do prazo de duração, o consenso unânime dos sócios, a deliberação da maioria absoluta em sociedades de prazo indeterminado, a falta de pluralidade de sócios não reconstituída em cento e oitenta dias e a extinção da autorização legal para funcionamento.


A dissolução, uma vez verificada, impõe a abertura da liquidação, conforme dispõe o art. 1.044, segundo o qual “a sociedade dissolvida entra em liquidação, subsistindo a personalidade jurídica apenas para os atos necessários à liquidação”. Nessa fase, a sociedade deixa de exercer sua atividade-fim e passa a atuar apenas para realizar o ativo e pagar o passivo, até que seja possível declarar a sua extinção definitiva.


Além da dissolução total, o ordenamento prevê a dissolução parcial, hipótese em que apenas o vínculo de um ou mais sócios é desfeito, permanecendo a sociedade ativa. Essa situação pode decorrer da morte, retirada ou exclusão do sócio, conforme previsão dos arts. 1.029 e 1.085 do Código Civil. A dissolução parcial exige apuração de haveres, etapa que demanda critérios técnicos e contábeis rigorosos, de modo a garantir que o sócio retirante receba valor justo e proporcional à sua participação societária.


3. A Dissolução na Lei das Sociedades por Ações


A Lei nº 6.404/1976, em seu art. 206, define as hipóteses de dissolução das companhias. Ela pode ocorrer de pleno direito, por decisão judicial ou por ato de autoridade administrativa. A dissolução judicial, especialmente, tem relevância quando se comprova a impossibilidade de cumprimento do fim social da companhia.


O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.321.263/PR, reconheceu a possibilidade de dissolução parcial de sociedade anônima diante da ausência prolongada de lucros e da não distribuição de dividendos, por caracterizar a inviabilidade de cumprimento do objeto social. O Tribunal entendeu que a dissolução, nesse caso, não se confunde com o colapso econômico da empresa, mas com o direito do acionista de não permanecer indefinidamente vinculado a uma sociedade que não lhe oferece retorno legítimo sobre o capital investido.


O mesmo tribunal, em outro julgado paradigmático (AgInt no AREsp 1.539.920/RS), admitiu a dissolução parcial de companhia de capital fechado, fundada na quebra da affectio societatis, quando caracterizada a perda de confiança e de colaboração entre acionistas. A jurisprudência reconhece que, em sociedades de caráter familiar ou com reduzido número de sócios, o elemento subjetivo é essencial à manutenção da estrutura social, e sua quebra autoriza a resolução parcial do vínculo, preservando a empresa.


Essas decisões evidenciam que o papel do Judiciário, nas dissoluções, não é o de extinguir indiscriminadamente as sociedades, mas o de restaurar o equilíbrio e a funcionalidade das relações internas, garantindo a continuidade do empreendimento quando viável.


4. A Dissolução pela Falência


A Lei nº 11.101/2005, em seu art. 104, dispõe que a decretação da falência implica o vencimento antecipado das dívidas do devedor e o início da liquidação concursal do patrimônio do empresário ou da sociedade empresária. A falência é forma de dissolução forçada, instaurada judicialmente em razão da insolvência.


Embora a decretação da falência encerre a atividade econômica, ela não extingue de imediato a personalidade jurídica, que subsiste até a conclusão da liquidação. Nesse processo, o administrador judicial atua como representante legal da massa falida, responsável pela arrecadação, avaliação e alienação dos bens. A responsabilidade dos sócios limita-se, em regra, ao valor do capital integralizado, exceto nos casos de abuso da personalidade jurídica, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, em que se aplica o art. 50 do Código Civil.


A falência cumpre função de ordem pública: reorganiza o passivo, promove o pagamento dos credores e evita que a desorganização econômica se propague. Assim, a dissolução pela falência é medida extrema, mas necessária à higidez do sistema econômico e à proteção da confiança no mercado.


5. A Apuração de Haveres: Balanço de Determinação, Balanço de Verificação e Fluxo de Caixa Descontado


A dissolução parcial exige a apuração do valor correspondente à participação do sócio que se retira, é excluído ou falece. Essa apuração deve refletir o valor real do patrimônio social, e não o valor histórico ou meramente contábil. O art. 1.031 do Código Civil e o art. 606 do Código de Processo Civil impõem o balanço de determinação como critério supletivo, método que busca retratar o valor patrimonial líquido da sociedade no momento da dissolução.


5.1. O Balanço de Verificação


O balanço de verificação é instrumento contábil utilizado para verificar a exatidão aritmética dos lançamentos feitos nos livros de escrituração. Ele lista todas as contas de débito e crédito do razão geral, demonstrando se os totais se equilibram, ou seja, se a contabilidade está matematicamente correta. Por exemplo, suponha uma sociedade que possua ativos registrados de R$ 1.000.000,00 e passivos de R$ 600.000,00. O balanço de verificação confirmará se o saldo líquido de R$ 400.000,00 está corretamente refletido nas contas correspondentes, sem omissões ou duplicidades.


Embora não sirva diretamente para apuração de haveres, o balanço de verificação é etapa prévia essencial, pois garante a confiabilidade dos dados contábeis que alimentarão o balanço de determinação. Ele funciona como a “checagem” do sistema, conferindo consistência às informações utilizadas no cálculo do valor patrimonial efetivo da sociedade.


5.2. O Balanço de Determinação: Natureza Jurídica e Função no Processo de Dissolução


O balanço de determinação constitui o ponto de convergência entre o direito e a técnica contábil no processo de dissolução parcial de sociedades. Sua finalidade é revelar o valor real e atual do patrimônio líquido da empresa, considerando não apenas as cifras históricas lançadas nos livros, mas também a situação econômica efetiva no momento da resolução do vínculo societário. O balanço de determinação não se confunde com o balanço patrimonial ordinário, pois este reflete a posição contábil de exercício fiscal, enquanto aquele busca expressar a verdade econômica do patrimônio social em data específica de dissolução.


Do ponto de vista jurídico, trata-se de instrumento que concretiza o princípio da igualdade entre os sócios e o direito de propriedade sobre a quota ideal. O sócio que se retira ou é excluído não deve receber menos do que efetivamente detém, nem mais do que sua participação representa no conjunto social. É por essa razão que o art. 606 do Código de Processo Civil estabelece o balanço de determinação como critério supletivo para a apuração de haveres, em consonância com o art. 1.031 do Código Civil, que assegura a liquidação proporcional da participação com base na situação patrimonial da sociedade à data da resolução. Assim, o balanço de determinação opera como uma fotografia contábil-jurídica do instante em que se encerra o vínculo societário, traduzindo a materialidade do patrimônio em termos de valor de mercado.


A metodologia do balanço de determinação impõe a reavaliação de ativos e passivos a preço corrente, incluindo bens tangíveis (como imóveis, maquinário e estoques) e intangíveis (como marca, clientela e ponto comercial). Essa reavaliação distingue-se da simples escrituração contábil, porque o objetivo não é atender a normas fiscais, mas garantir justiça econômica na dissolução. Se a sociedade dispõe, por exemplo, de equipamentos depreciados contabilmente, mas ainda plenamente utilizáveis e de alto valor de reposição, o balanço de determinação deve considerar o valor de mercado, e não o valor contábil depreciado. O mesmo se aplica aos ativos intangíveis, cuja força econômica — embora não registrada nos balanços convencionais — compõe o patrimônio real da empresa.


O Superior Tribunal de Justiça tem reiterado a supremacia do balanço de determinação sobre outras metodologias de avaliação. No REsp 1.877.331/SP, o Tribunal afastou o uso do fluxo de caixa descontado, por entender que ele se baseia em projeções futuras sujeitas a elevado grau de incerteza, e reafirmou que a apuração de haveres deve refletir a realidade patrimonial existente no momento da dissolução. Em outro precedente (REsp 2.020.490/SP), reafirmou-se que o balanço de determinação é o método que melhor concilia segurança jurídica, equidade e correspondência entre o valor econômico e o valor jurídico da participação societária.


O balanço de determinação cumpre função dupla: garante a liquidez e a exatidão na apuração de haveres, e ao mesmo tempo materializa o dever de boa-fé e transparência entre os sócios. Ele transforma a dissolução, frequentemente marcada por conflito, em um processo técnico e racional de recomposição patrimonial. Por essa razão, o balanço de determinação é considerado o instrumento mais adequado para assegurar a justiça distributiva na dissolução parcial das sociedades, evitando tanto o enriquecimento indevido do retirante quanto o prejuízo dos sócios remanescentes.


5.3. A Técnica do Fluxo de Caixa Descontado


O fluxo de caixa descontado (FCD) é técnica econômica de avaliação de empresas baseada na projeção de resultados futuros. Consiste em estimar o fluxo de caixa que a empresa gerará nos anos seguintes e trazê-lo ao valor presente, aplicando-se uma taxa de desconto que representa o custo de capital e o risco do negócio. Por exemplo, imagine-se uma sociedade com expectativa de gerar R$ 200.000,00 anuais de lucro líquido pelos próximos cinco anos, com taxa de desconto de 10% ao ano. O valor da empresa, pelo método do FCD, será o somatório dos valores presentes desses fluxos, resultando em aproximadamente R$ 758.000,00.


Contudo, o STJ tem rechaçado a utilização desse método na apuração de haveres. No REsp 1.877.331/SP, o Tribunal afirmou que o FCD é inadequado por basear-se em previsões e hipóteses futuras, sujeitas a incertezas de mercado e variações não controláveis. A apuração de haveres deve refletir a realidade patrimonial no momento da dissolução, e não projeções hipotéticas de lucros futuros. Assim, prevalece o balanço de determinação, que espelha o valor presente e efetivo da sociedade, preservando a segurança jurídica e evitando enriquecimentos indevidos.


5.4. A Convergência entre os Métodos


Enquanto o balanço de verificação atua como instrumento de controle contábil e o balanço de determinação expressa o valor econômico atual, o fluxo de caixa descontado representa método prospectivo, mais afeito a operações de mercado ou transações empresariais de compra e venda. No processo judicial de dissolução, o ordenamento jurídico brasileiro privilegia a objetividade e a prudência, evitando critérios especulativos. Assim, a apuração de haveres deve fundar-se em dados concretos, auditáveis e verificáveis, de modo a preservar a boa-fé, a isonomia entre os sócios e a função estabilizadora do direito empresarial.


6. Conclusão


A dissolução de sociedades é etapa inevitável da vida empresarial e deve ser conduzida com observância estrita à legalidade e à técnica. O sistema jurídico brasileiro estrutura o processo dissolutório de modo a equilibrar interesses particulares e coletivos, assegurando que o encerramento da sociedade ou a saída de sócios ocorra de forma justa, transparente e economicamente racional.


A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem desempenhado papel central na consolidação dessa racionalidade. Ao adotar o balanço de determinação como método padrão e afastar o fluxo de caixa descontado, reafirma-se a supremacia da realidade sobre a especulação e da certeza contábil sobre as projeções incertas. A dissolução, em todas as suas formas, representa não a destruição da empresa, mas a sua regularização jurídica e patrimonial, encerrando de modo ordenado o ciclo de sua existência.



Referências


BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.BRASIL. Lei das Sociedades por Ações. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976.BRASIL. Lei de Falências e Recuperação de Empresas. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.321.263/PR, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 06 dez. 2016.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no AREsp 1.539.920/RS, Rel. Min. Raul Araújo, j. 18 maio 2020.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.877.331/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 14 maio 2021.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no REsp 1.596.824/MG, j. 11 abr. 2024.

 
 
 

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