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A RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR NAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS: FUNÇÃO ORGÂNICA, PODER-DEVER E O REFLUXO NORMATIVO DA CULPA


Por Raphael Jorge Tannus


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Resumo


A administração, nas sociedades empresárias, é o ponto de interseção entre o ser jurídico e o agir econômico. O administrador, como órgão da pessoa coletiva, faz transitar a vontade social do plano das normas para o plano dos fatos, transformando a estrutura jurídica em ação socialmente eficaz. Sua responsabilidade, quando emerge, não é um castigo, mas o reflexo normativo da violação da função que lhe é confiada. O presente estudo, inspirado na lógica sistemática do direito privado, analisa o regime jurídico da responsabilidade do administrador à luz do Código Civil, da Lei das Sociedades por Ações e da Lei nº 11.101/2005, delineando os princípios, as hipóteses e o conteúdo funcional do poder-dever de administrar. Demonstra-se que a responsabilidade do administrador é, antes de tudo, o modo pelo qual o direito restaura o equilíbrio do sistema, quando o órgão da vontade social se desvia de sua finalidade.


Palavras-chave: administrador societário; responsabilidade funcional; poder-dever; imputação jurídica; falência; dever fiduciário.



1. A Pessoa Jurídica e a Ação: a Administração como Ato de Ser


A sociedade é uma pessoa ideal. Não tem corpo, nem voz, nem vontade natural. É o direito quem lhe empresta o verbo, e este verbo se chama administrador. O administrador não é um simples representante: é o órgão que faz com que a sociedade exista nos atos e produza efeitos no mundo. No momento em que ele age, é a própria pessoa jurídica que se manifesta. O seu ato, enquanto ato jurídico regular, não é seu, mas da sociedade, e assim se mantém enquanto respeita a forma e o limite que o ordenamento lhe impõe.


O poder de administrar é, pois, um poder-dever. Toda atribuição jurídica é medida e vinculada: não existe direito sem função, nem poder sem limite. O administrador não possui uma liberdade originária, mas uma liberdade condicionada à finalidade social e à ordem do contrato. O direito lhe confere autoridade, mas também o cerca de deveres. O poder que o direito cria é o mesmo que o direito contém, porque, no sistema, o poder é apenas o reverso do dever funcional.


Quando o administrador ultrapassa o limite de sua competência, o ato perde o caráter orgânico e se converte em ato pessoal. É nesse momento que nasce a responsabilidade. A norma, que antes atribuía os efeitos à sociedade, volta-se contra o homem que a violou. Surge o fenômeno da imputação reversa: o refluxo normativo da culpa, que reconduz o ato ao seu autor físico. É a própria lógica do sistema jurídico que exige isso, pois a função não pode sobreviver ao abuso que a nega.



2. O Administrador como Órgão de Imputação


No edifício da sociedade, o administrador é o ponto de contato entre a abstração da personalidade jurídica e a concretude dos atos econômicos. Sua posição é orgânica, não contratual. O mandato pode ser um dos instrumentos de sua investidura, mas a natureza de seu poder deriva da lei, não da vontade particular dos sócios. Ele age em nome próprio e por conta da sociedade, mas não como representante: age como a própria sociedade agiria se tivesse existência corpórea.


Daí decorre o princípio basilar: as obrigações assumidas regularmente pelo administrador obrigam a sociedade, e não o seu patrimônio pessoal. O administrador, enquanto cumpre a finalidade do cargo, é protegido pela autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Contudo, o direito não o imuniza incondicionalmente. Essa proteção cessa quando ele atua com culpa, dolo ou violação da lei e do contrato social. A regra é de irresponsabilidade, mas a exceção — quando surge — é expressão direta da necessidade de preservação da ordem jurídica.


A separação entre a pessoa jurídica e o administrador não é um véu intransponível, mas um equilíbrio dinâmico. A norma cria a distinção; o abuso a dissolve. Quando a conduta do administrador rompe o elo entre a função e a finalidade, o direito retira-lhe o manto da personalidade coletiva e o faz responder como sujeito singular. A ficção jurídica se dissolve na medida exata em que o abuso começa.



3. A Responsabilidade Funcional: Culpa, Dolo e Desvio de Finalidade


O art. 1.016 do Código Civil é a norma matriz da responsabilidade administrativa. Ele dispõe que “os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”. Não se trata de mera solidariedade formal, mas de imputação direta àquele que, por ação ou omissão, violou a norma que regula o modo de agir do órgão. A responsabilidade é subjetiva quanto à forma, porque depende de culpa ou dolo, mas é objetiva quanto à estrutura, porque decorre da violação da função, e não da simples intenção individual.


O sistema constrói, assim, quatro elementos indispensáveis: ato ilícito, culpa ou dolo, dano e nexo causal. O ato ilícito é o rompimento da forma normativa do exercício do poder. A culpa é o desvio da diligência que o direito espera do homem prudente. O dano é a consequência econômica da violação, e o nexo é o elo jurídico que transforma o fato em dever de reparar. Sem esses elementos, não há responsabilidade. A mera infelicidade empresarial não gera obrigação de indenizar; só a transgressão do dever jurídico de administrar o faz.


Essa distinção é vital: o administrador não é fiador do sucesso da empresa. O direito não o julga pelo resultado econômico, mas pela regularidade jurídica da conduta. O insucesso, quando fruto de risco normal, pertence à sociedade; o prejuízo, quando proveniente de culpa funcional, pertence ao homem. A norma não pune o fracasso, mas a infidelidade à função.



4. Formas de Culpa e de Abuso


A culpa administrativa assume formas variadas. Há a culpa na gestão, quando o administrador age com negligência, imprudência ou imperícia, e por isso gera prejuízo à sociedade. Há o dolo, quando o administrador desvia conscientemente os bens ou os objetivos sociais para fins próprios. E há o abuso de forma, quando a estrutura jurídica é utilizada como instrumento de ocultação ou fraude.


O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em acórdão de 2019 (Apelação 0074420-08.2010.8.13.0480), reafirmou que a simples existência de débitos empresariais não comprova má gestão, mas que a negligência comprovada na condução dos negócios gera responsabilidade direta. O Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.087.142/MG, reconheceu que o administrador que viola a lei ou o contrato social desfaz o vínculo orgânico e responde pessoal e solidariamente pelos danos. A jurisprudência do TJSP (Ap. Cív. 1025738-28.2021.8.26.0554) igualmente sancionou a administradora que utilizou recursos da empresa para fins pessoais, aplicando o art. 1.017 do Código Civil.


Mais grave é a dissolução irregular da sociedade, que rompe a confiança jurídica do comércio. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal (0717264-40.2021.8.07.0015) qualificou como gestão temerária o encerramento informal das atividades sem liquidação nem escrituração, responsabilizando pessoalmente o administrador.


Por fim, quando há desvio de finalidade ou confusão patrimonial, incide o art. 50 do Código Civil, que permite a desconsideração da personalidade jurídica. O STJ, no REsp 1.658.648/SP, fixou que, nas relações empresariais, a desconsideração só se aplica mediante prova inequívoca de abuso.



5. O Poder como Dever: a Fidúcia e a Ética da Função


Todo poder jurídico traz em si uma norma de contenção. O administrador não é senhor da empresa; é depositário da confiança social. O direito o investe não para que disponha, mas para que administre; não para que possua, mas para que preserve. O poder que lhe é dado é o mesmo que o obriga. Daí o caráter fiduciário da função: o administrador é guardião da vontade coletiva e responsável por garantir que a empresa cumpra sua função econômica e social.


Os deveres fiduciários são quatro: diligência, lealdade, transparência e finalidade. Diligência, para que administre com prudência e técnica. Lealdade, para que não se sirva do cargo em benefício próprio. Transparência, para que mantenha os sócios e órgãos de controle informados. E finalidade, para que toda sua ação sirva ao objeto social e à função social da empresa. A violação desses deveres dissolve a confiança e aciona o mecanismo jurídico da responsabilidade.


O administrador, ao agir, não exerce liberdade, mas obrigação institucional. Ele é o instrumento de continuidade da pessoa jurídica; seu dever é o de fazer durar o ser da sociedade dentro da ordem do direito.


6. A Responsabilidade na Crise: a Falência e a Recuperação


A crise é o momento em que a norma revela sua força moral. É nela que se prova se o administrador cumpriu a função ou se dela abusou. A Lei nº 11.101/2005 estabelece, em seus arts. 81 e 82, o regime da responsabilidade na falência: o administrador responde civil e penalmente pelos atos praticados com dolo, culpa ou violação de lei, e pode ser inabilitado por até cinco anos se não entregar documentos ou não cooperar com o administrador judicial.


A responsabilidade, aqui, ultrapassa a ideia de reparação e assume caráter institucional. O administrador não é apenas devedor de uma obrigação, mas infrator da confiança do sistema. A inabilitação é a pena jurídica da infidelidade funcional. Mesmo destituído, ele permanece vinculado ao dever de colaboração, porque o vínculo fiduciário não se rompe com o encerramento do cargo, mas persiste enquanto subsistirem os efeitos jurídicos de sua administração.


Durante a recuperação judicial, o art. 64 autoriza o juiz a afastar o administrador que pratique atos de má-fé, fraude ou gestão temerária. O direito não o condena pelo infortúnio, mas pelo desvio da boa-fé objetiva. O juiz não substitui o administrador; apenas o remove para preservar o organismo social que ele colocou em risco. O poder de administrar é, em sua essência, condicional e revogável pela lei.



7. A Jurisprudência e a Unidade do Sistema


A jurisprudência contemporânea reafirma o mesmo princípio: a autonomia privada é a regra, a responsabilidade pessoal é a exceção. O STJ, no AREsp 2.462.266/RJ, decidiu que o sócio administrador não pode votar sobre sua própria destituição, em respeito à moralidade societária.


O TJSP, no AI 2325455-54.2023.8.26.0000, confirmou que o sócio majoritário pode destituir o administrador minoritário sem necessidade de intervenção judicial. O TJMG, no caso Posto Guanhães Ltda-EPP, reconheceu a validade de deliberação majoritária sem assembleia formal, conforme o art. 70 da LC 123/2006.


Essas decisões não se contradizem: todas afirmam o mesmo dogma estrutural — o poder administrativo é fiduciário e, por isso, limitado. Onde há abuso, há responsabilidade; onde há legalidade e boa-fé, há autonomia. O sistema jurídico não pune o risco, mas o desvio da norma de confiança que sustenta o poder de gerir.



8. Considerações Finais


O administrador é a consciência funcional da sociedade. Nele, o direito deposita o poder de agir e a esperança de equilíbrio. Quando cumpre a função, é o prolongamento da pessoa jurídica; quando a viola, é o ponto de sua ruptura. A responsabilidade que o direito lhe impõe não é castigo, mas restauração da unidade violada.


O poder e o dever, no direito, não se separam: são faces de uma mesma forma. O dever nasce do poder, e o poder subsiste enquanto o dever é respeitado. Quando o dever se quebra, o poder degenera em abuso, e o abuso retorna ao seu autor sob a forma da responsabilidade. É assim que o sistema se conserva íntegro: cada excesso é devolvido à medida; cada ato é reconduzido ao seu lugar normativo.


A norma não se vinga, apenas se recompõe. O administrador, ao ser responsabilizado, não sofre punição moral, mas experimenta o efeito jurídico da ruptura de sua própria função. O direito, que o havia feito órgão, o rebaixa novamente à condição de indivíduo. E nesse movimento — da função ao sujeito — cumpre-se a ordem eterna do sistema: onde o poder se excede, o dever renasce.



Referências Legislativas e Jurisprudenciais


Código Civil (Lei nº 10.406/2002): arts. 50, 997, 1.011, 1.016, 1.017, 1.019, 1.053, 1.063 e 1.074.


Lei nº 6.404/1976 (Lei das S.A.): arts. 138 a 160.


Lei nº 11.101/2005: arts. 64, 81, 82 e 83.


Lei Complementar nº 123/2006: art. 70.


STJ – REsp 1.087.142/MG (24/08/2011); REsp 1.658.648/SP (20/11/2017); AREsp 2.462.266/RJ (25/09/2024).


TJSP – AI 2325455-54.2023.8.26.0000; Ap. Cív. 1025738-28.2021.8.26.0554.


TJMG – Ap. 0074420-08.2010.8.13.0480; TJDFT – 0717264-40.2021.8.07.0015.

 
 
 

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Tannus Sociedade de Advogados - OAB/SP 11312. 

Jorge Tannus Sociedade de Advogados - OAB/SP 18145.

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